Texto: João Lucas Gama
Esta sexta-feira, dia 11 de setembro, é uma data sobre a qual se faz necessária uma profunda reflexão. Um dia em que é preciso relembrar o passado. Uma data que marca um violento ataque terrorista a um país americano, deixando uma mancha de sangue no território deste continente. Há 47 anos, o imperialismo americano calou Salvador Allende e lançou o Chile em uma das mais sangrentas ditaduras do século XX.
O ano era 1973. Salvador Allende era o presidente chileno e foi o primeiro socialista a ser democraticamente eleito no continente americano. Oriundo de uma grande aliança entre os partidos de esquerda, Allende havia levado o país a um processo de grandes conquistas para a classe trabalhadora. Através do que chamou de “via chilena para o socialismo”, iniciou processos de reforma agrária e nacionalização da indústria e dos bancos. O intuito era criar, por vias democráticas e respeitando as instituições, um caminho que levasse a socialização dos meios de produção e propriedades chilenas; ou seja, promover uma revolução democrática de dentro do sistema político do seu país.
No entanto, Allende acaba esbarrando nos interesses das elites e da forte influência política dos Estados Unidos, que já haviam organizado um plano de tomada do país, batizado de “Projeto Fubelt”, ou “Track II” (em português – Política dos dois Trilhos). Nenhuma narrativa sobre os bastidores deste o projeto golpista que derrubou a democracia chilena foi tão bem contada do que aquela feita pelo grande escritor e jornalista colombiano, Gabriel García Márquez, na crônica “Chile, el golpe y los gringos” (em português – Chile, o golpe e os gringos), publicada no livro Reportagens Políticas – Obra Jornalística – Volume 4. Segue o relato:
“No final de 1969, três generais do Pentágono jantaram com quatro militares chilenos numa casa dos subúrbios de Washington. O anfitrião era o então coronel Gerardo López Angulo, adido aeronáutico da missão militar do Chile nos Estados Unidos, e os convidados chilenos eram seus colegas das outras armas. O jantar era em homenagem ao diretor da Escola de Aviação do Chile, general Carlos Toro Mazote, que chegara no dia anterior para uma temporada de estudos. Os sete militares comeram salada de frutas e assado de vitela com ervilhas, beberam vinhos suaves da remota pátria do sul — onde havia pássaros reluzentes nas praias enquanto Washington afundava na neve — e falaram em inglês sobre a única coisa que parecia interessar aos chilenos naquele momento: a eleição presidencial de setembro.
À sobremesa, um dos generais do Pentágono perguntou o que faria o exército chileno se o candidato da esquerda, Salvador Allende, ganhasse a eleição. O general Mazote respondeu:
— Tomaremos o Palácio de La Moneda em meia hora, ainda que tennhamos de incendiá-lo.
Um dos convidados era o general Ernesto Baeza, atual diretor da Segurança Nacional do Chile, que acabou dirigindo o assalto ao palácio presidencial no recente golpe e deu a ordem de incendiá-lo.
Dois dos seus subalternos daqueles dias se celebrizaram na mesma jornada: o general Augusto Pinochet, presidente da Junta Militar, e o general Javier Palácios, que participou da refrega final contra Salvador Allende. Também se encontrava à mesa o brigadeiro Sérgio Figueroa Gutiérrez, atual ministro de Obras Públicas, e amigo íntimo de outro membro da Junta Militar, o marechal-do-ar Gustavo Leigh, que ordenou o bombardeio aéreo ao palácio presidencial. O último convidado era o atual almirante Arturo Troncoso, agora comandante da base naval de Valparaíso, que fez o expurgo sangrento da oficialidade progressista da marinha de guerra e iniciou o levante militar na madrugada do 11 de setembro.
Aquele jantar histórico foi o primeiro contato do Pentágono com ofi-ciais das quatro armas chilenas. Em outras reuniões sucessivas, tanto em Washington como em Santiago, chegou-se ao acordo final de que os militares chilenos mais ligados à alma e aos interesses dos Estados Unidos tomariam o poder caso a Unidade Popular ganhasse a eleição. Tomaram a decisão a frio, como uma simples operação de guerra, sem levar em consideração as condições reais do Chile”.
Chile, El Golpe y Los Gringos – Gabriel Gárcia Marquez.
Quatro anos após a reunião descrita por Gárcia Márquez, o golpe chileno foi perpetrado. O Palácio de La Moneda (casa do Poder Executivo) foi bombardeado pelas forças armadas do seu próprio país, as ruas de Santiago incendiadas e o presidente executado (ou suicidado). Augusto Pinochet chegou ao poder no mesmo dia 11 de setembro, dando início a uma ditadura de 17 anos. Segundo dados oficiais, cerca de 40 mil chilenos foram mortos pelo regime autoritário, porém organizações de familiares dos mortos e desaparecidos estimam que as vítimas possam ultrapassar a marca de 100 mil corpos (muitos desses jamais encontrados).
O regime de Pinochet, fez muito mais do que perseguir opositores e militantes da esquerda. Foi durante a ditadura chilena que o modelo econômico proposto pela Escola de Chicago, casa de gurus do neoliberalismo como George Stigler e Milton Friedman, passou a ser implementado na América Latina. O modelo neoliberal acabou por pulverizar toda a seguridade social, os serviços públicos e as relações de trabalho do país. À frente deste processo estava um grupo de economistas (norte americanos e latino americanos) formados pela famigerada de Escola de Chicago e batizados de Chicago Boys (entre eles o, até então, jovem Paulo Guedes), que implementaram uma agenda radicalmente neoliberal, fazendo com que a educação, a saúde, a previdência e demais serviços públicos fossem para as mãos do capital privado. Como consequência desse golpe de 11 de setembro, vieram duras reformas do governo, capitalizando a previdência social e fazendo com que os aposentados ganhassem menos do que a metade de um salário mínimo, aumentando abruptamente a pobreza no país. A educação e a saúde pública também vieram à falência com a implementação de políticas de subsídio estatal para os grupos de educação e saúde privadas. Em poucas palavras, toda a existência do povo chileno foi privatizada.
Sinésio Pontes, diretor de Comunicação e Formação do Sindipetro PE/PB e graduando em Ciências Políticas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aponta que este processo “foi um laboratório neoliberal radical na América Latina, acabando com direitos e garantias de bem-estar social, conquistados a duras penas”. Ele chama a atenção para a repetição dessa agenda econômica por parte do atual governo brasileiro. “O Brasil hoje sofre com um resquício dessa ditadura, com um ministro da Economia oriundo da Escola de Chicago, que vem aprofundando a mesma agenda neoliberal, acabando com os direitos sociais do povo brasileiros e entregando do patrimônio público ao capital privado (processo iniciado com o Golpe de 2016, contra a presidente Dilma Rousseff)”, diz o sindicalista.
Porém, nem só da agenda neoliberal chilena se alimenta o governo de Jair Bolsonaro. Desde que era Deputado Federal que o mesmo faz menções honrosas ao ditador, da mesma forma que faz menções honrosas ao regime militar brasileiro e seus torturadores. Com frases como “fez o que tinha que ser feito” ou que “devia ter matado mais gente”, Bolsonaro demonstra o seu total desprezo pela vida e pela democracia, revelando assim, o seu tão conhecido sonho genocida. Sonho esse que, hoje, já nos custou 130 mil mortes. Os ataques de Bolsonaro ao Estado Democrático de Direito também são constantes. Levando em consideração o número de 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo não resta dúvidas que já vivemos em governo militar e, por muito pouco, não tivemos um novo Golpe de Estado no Brasil (como mostra a reportagem da jornalista Monica Gugliano para a Revista Piauí)
Para Sinésio “o 11 de setembro é uma data para a gente guardar na história, mas não da forma como os imperialistas querem. O 11 de setembro real, aconteceu em 1973, quando o presidente, Salvador Allende, foi atacado (a mando de Pinochet) dentro do Palácio de La Moneda, e morreu defendendo a constituição e o cargo para o qual foi eleito. Pinochet impôs uma ditadura sanguinária que durou até os anos de 1990”. Há 29 anos o povo chileno tenta se recuperar dos traumas desse período e a onda de protestos de outubro do ano passado foram um reflexo do esgotamento do modelo neoliberal deixado pelo seu mais famoso líder genocida.
Mas e quanto a nós, brasileiros e brasileiras? Como iremos lidar com o nosso presidente genocida? Quanto tempo levará até que possamos ter superado as perdas e os traumas (marcados a sangue e fogo) pelo imperialismo e sua agenda neoliberal?